EXPOSIÇÃO

"Herdeiras da Amazônia" pelas lentes do fotógrafo indigenista Renato Soares

Novo ensaio fotográfico revela a ancestralidade indígena que há em cada um de nós

Isabella Thiago de Mello
15/08/2022 às 19:42.
Atualizado em 15/08/2022 às 19:43

A Magia de Rosa dos Anjos, Rio Negro (2022) (Foto: Renato Soares)

 A obra do indigenista Renato Soares é chamada pela Academia de “Antropologia Visual”, ou, como a “Antropologia da Beleza,” pelo seu compromisso de revelar o que há de belo e sábio nos costumes indígenas, através da confiança e paixão que ele adquiriu das mais de 90 etnias pesquisadas, ao longo de 30 anos de expedições Brasil afora.

O olhar do fotógrafo nos transporta à vida de índios integrados à natureza, ao modo sublime de pais que ensinam seus filhos a ler as estrelas, e como conseguiram sobreviver à barbárie da colonização, que, infelizmente, ainda permanece, 500 anos depois da chegada dos portugueses e dos espanhóis, aqui, no continente americano.

Discípulo de Orlando Villas Bôas, o documentarista é um defensor da demarcação dos territórios indígenas garantidos na Constituição de 1988, assim como trabalha, incessantemente, pela preservação da cultura do índio como patrimônio histórico brasileiro. “O índio precisa permanecer com seu conhecimento e sua maneira de conviver na tribo. Só assim permanecerá pleno e saudável. A eterna catequese de querer que eles deixem de ser índios e “integrá-los à sociedade branca” só aumenta o índice de pobreza, tristeza, e números de suicídio. Índio aculturado é índio degradado. E eu jamais irei registrá-los desse jeito. Seria uma irresponsabilidade,” comenta Soares.

Com este objetivo de enaltecer a cultura dos povos originários, Renato Soares desde 1991, desenvolve o ambicioso projeto “Ameríndios do Brasil” que tem a missão de documentar todas as populações indígenas do país, são mais de 305 etnias e 274 línguas, de norte a sul, do Oiapoque ao Chuí. E com o fruto desse Acervo, o pesquisador ministra palestras em escolas e universidades da América Latina e Europa, além de divulgar em exposições e livros, as histórias dos nossos índios, suas cores, e seus ritos que ultrapassam o tempo mantendo tradições milenares.

Ancestralidade indígena feminina - Nova exposição à vista

Em Manaus, dessa vez de volta da expedição em Maturaca, na Cabeça do Cachorro, na terra dos Yanomamis no Amazonas, Renato Soares inicia um novo ensaio fotográfico, com o tema “Ancestralidade Indígena Feminina”, do lado de cá da tribo. 

Na reportagem, o indigenista revela os bastidores do Ensaio de Arte, em seguida, sobre a homenagem que ele faz à Maureen Bisilliat na Exposição Amazônia Indígena, em cartaz no MUSA e diz também que já foi ameaçado de morte no Vale do Javari. Vamos à entrevista:


O sagrado vem das águas pela filha do poeta, Rio Negro (2022) (Foto: Renato Soares)

Isabella  – “Ter no sangue e no corpo a ancestralidade indígena é uma realidade de todos nós. Ou da grande maioria dos brasileiros. Seria esse o conceito do novo trabalho?”

Renato Soares – “Exatamente. Veja: nos primeiros 200 anos da colonização só vieram homens prá cá. Então, eles se deitaram, fizeram filhos com as índias. (Pausa). Sim, lamentavelmente, é uma história violenta, de sequestro, estupro e morte. Ainda hoje, é muito comum ouvirmos, como se fosse natural, que “a vovó foi laçada pelo vovô.” O fato é que 75% da genética do povo brasileiro é indígena. Olhar o índio, a história do índio, como ele sobreviveu e resistiu, e pinta-se, enfeita-se, e dança e canta e ama, e é feliz. Olhar o índio é olhar para nós mesmos.”

“Quero unir os personagens, as índias Yawalapíti, Ticunas, com as herdeiras das índias de cá da tribo dos Manaós, pessoas amigas que fazem parte da minha convivência. De alguma maneira, são personagens reais que eu admiro pelo que fazem, além da beleza indígena traçada em seus semblantes. Mas o que as une de verdade, é que todas possuem profundos laços com a AMAZÔNIA! 

A Crítica – “Quando você começou a pensar esse ensaio? 
E quem são as personagens escolhidas? 

Renato Soares – “Venho ao Amazonas há muito tempo para ministrar palestras no INPA, UFAM, IGHA, e também pelas expedições, porque é o estado que concentra o maior número de etnias indígenas do Brasil: Waimiri-Atroari, Yanomamis, Parintintins, Saterés-Maués, Desanas, Munduricus, Makunas, Muras, Maraguás, Matis, Tucanos, etc. E por isso, construí fortes laços de amizades com famílias de professores, jornalistas, antropólogos, aqui na capital.”

“Então, digo que esse novo ensaio começou intuitivamente, sempre passando por Manaus, fotografando algumas pessoas amigas. A primeira foi dona Graça Mitoso, ela é professora de Letras e desenvolve um trabalho sócio-ambiental de manejo de sementes nativas no seu sítio, perto da reserva do Tarumã, e conhece muitos mistérios. Eu a fotografei a noite, com o elemento do fogo.” 

“Depois com o elemento da água, eu já sonhava com a artista plástica Rosa dos Anjos. Ela é uma mulher muito forte e uma ativista cultural, e tem um sorriso cativador, o olhar da índia.”

A Crítica – Sim, foi Rosa quem moveu o mundo em favor da Santa Casa de Misericórdia, que estava abandonada em pleno centro histórico de Manaus. Chamou a Justiça, o Ministério Público, o Exército, o Bombeiro, a Imprensa e o escambau. Você sabia?”

Renato Soares – “Claro. Quem não sabe dessa história? Outra coisa: a Galeria de Arte da Rosa é uma referência para vários artesãos indígenas na venda de seus artesanatos. Ela promove oficinas e exposições coletivas de artistas. É uma pessoa com o dom da solidariedade.” 

A Crítica – Bem ...

Renato Soares – “Deixa que eu conto: fiz questão de convidar Isabella Thiago de Mello para fotografar ao lado de Rosa dos Anjos nas águas douradas do Rio Negro. Isabella está radicada em Manaus, a frente do Instituto que leva o nome do Pai para proteger e restaurar as casas de Thiago que estão abandonadas no interior da Floresta, em Barreirinha. Thiago morreu em janeiro desse ano, e ela fez da dor da partida – como ela gosta de dizer, que acredita na imortalidade da alma – força e coragem para dar continuidade ao legado. É uma história que por si só dá um documentário, e Bella está com a mão na massa na produção do filme “Porantim” e me chamou, eu aceitei para assinar a Direção de Fotografia do filme, e do livro de Arte.”

Renato Soares – “Elas me trouxeram o universo criador da magia, do sagrado feminino.  Consegui unir a poesia da filha do poeta com a arte de Rosa. Podia ser a lenda das Amazonas, guerreiras de Nhamundá, ou a lenda da Iara, criadoras dos seus destinos. Não dirigi a cena, deixei que tudo fluísse entre elas, desde o ritual da pintura dos corpos com urucum, colares e desenhos com traços marajoara acima dos seios. Foi um presente, um pedaço do paraíso, um momento de união e sacramento.”

 A Crítica − Fotografar essa ancestralidade feminina é um desafio?

Renato Soares – “Sim, o feminino é um grande desafio. Uma sociedade marcada pelas guerras e pela destruição da natureza, porque não dizer, é de ordem masculina. Nossa sociedade encontra-se doente. Precisamos muito desta cura e tenho certeza absoluta que ela vem da mulher!”

A Crítica − Tem previsão de quando será publicado o ensaio? 

Renato Soares − “Por enquanto estamos produzindo as imagens. Com certeza faremos livro de Arte e exposição. Acho importante unir os perfis femininos de dentro e de fora da tribo, revelar a semelhança e comprovar, estampados nos rostos, que somos todos irmãos, herdeiros da Grande Mãe Índia. E essa especial herdeira dos Saterés Maués do Rio Andirá, convidei Isabella Thiago de Mello para compor o texto do livro com sua Literatura.”
    
A Crítica − Deve ser difícil pra você que estuda e convive com os povos indígenas

Renato Soares − “Como dizer sobre aquilo que mais gostamos que é a vida?! As pessoas ainda não perceberam a importância da manutenção da natureza e sua diversidade. Inclusive a diversidade humana em toda sua plenitude. Até quando vamos acreditar que o capital é o que importa?”

“Em uma entrevista recente, me disseram que o homem mais inteligente do mundo é o Elon Musk. E que ele estava construindo foguetes para levar o homem para novos planetas antes que a terra entre em colapso. Respondi prontamente que: A maior beleza da humanidade era uma orquestra com mais de 100 músicos sendo regida por um maestro. Não vejo graça alguma neste foguete tripulado e barulhento. Se ele fosse o cara mais inteligente do mundo, transformaria desertos em florestas, ao invés de – pois é esta a impressão que me dá – de pura covardia, porque ele está fugindo da responsabilidade de consertar seus erros.” 

“Sobre a política indigenista atual, o que mais posso dizer diante das covardes mortes de Bruno e Dom? A minha exposição de fotografias “Amazônia Indígena” que está em cartaz no MUSA, em Manaus, é o oposto dessa realidade cruel, dessa “terra sem lei” de garimpo ilegal, madeireira ilegal, pesca ilegal, comércio de drogas, etc. A minha fotografia tenta mostrar o que temos de mais precioso de nossos povos originários, com intuito de preservá-los, e você pode ter certeza que era esta mesma intenção que tinha o trabalho de Bruno e Dom. Foi uma perda irreparável. Estamos todos de luto.”  


Sorriso da Menina Kalapalo, Terra Indígena Xingu (2017) (Foto: Renato Soares)

A Crítica – E já que tocamos nesse assunto, a pergunta que não quer calar é: ao longo desses anos, defendendo as áreas indígenas, você já foi ameaçado por garimpeiro, dono de fazenda, comerciante, ou coisa parecida?

 
Renato Soares – “Quem trabalha neste tema está sempre sujeito a ameaças. Sim, em 1991 no mesmo Vale do Javari, onde Bruno e Dom foram assassinados, também fui ameaçado. No Mato Grosso, no início dos 1980, criamos uma campanha pela criação do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães. Levamos ao congresso mais de 1 milhão de assinaturas e o parque foi criado por decreto, em 1986, pelo Sarney. Fomos ameaçados durante anos por personagens, hoje, conhecidos na política nacional. 
 
A Crítica −  A sua exposição no MUSA é dedicada à fotógrafa Maurren Bisilliat. Conte-nos.

Renato Soares − “Sim. É uma homenagem pela importância de Maureen Bisilliat na fotografia mundial, pelo legado que ela representa e porque ela teve muita influência em minha carreira profissional. Trabalhamos juntos e fizemos alguns livros, como "Sondagem na Alma do Povo e Pavilhão da Criatividade", entre outros. Além de tudo, tenho a honra de tê-la como amiga querida. Estou reunindo todos os esforços para levá-la ao Amazonas e vermos juntos nossa exposição!”

A Crítica – Como vocês se conheceram? 

Renato Soares − “Conheci Maureen na casa do sertanista Orlando Villas Bôas, no início dos anos 90. Ela não me ensinou a fotografar, mas mudou minha maneira de olhar o mundo, e isto me trouxe inúmeras possibilidades. Foi como uma dessas professoras rígidas que te abrem portas de conhecimentos. Ela, Orlando, Darcy Ribeiro, e tantos outros intelectuais que tive o prazer de conhecer. Com Orlando, quem eu tenho como Mestre, realizei vários trabalhos e ele me disse uma vez: "Se você quer aprender comigo, entenda que tudo que vou lhe contar não te pertence. Conhecimento é para ser dividido!"

***
Serviço: Exposição Amazônia Indígena de Renato Soares, 
Museu da Amazônia/MUSA até 20 de Outubro.
Reserva Florestal Adolpho Ducke
Avenida Margarita 6.305
Cidade de Deus. Manaus.Herdeiras da Amazônia pelas lentes de Renato SoaresHerdeiras da Amazônia pelas lentes de Renato Soares

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