Grávida e mãe de três filhos, a haitiana refugiada Gloriane Aimable Antoine, de 39 anos, relata como tem sido vítima de seguidos cortes de energia, roubos de fios elétricos e perseguição racial na Zona Norte de Manaus
Refugiada, Gloriane Aimable Antoine, chegou em Manaus, em 2012, depois de sobreviver ao terremoto que devastou o Haiti em 2010 (Foto: Arlesson Sicsu/Free lancer)
“O que estão fazendo comigo é perseguição racial. Me deixem trabalhar em paz!”. Esse é o apelo da haitiana refugiada, Gloriane Aimable Antoine, de 39 anos, grávida e mãe de três filhos. Em Manaus desde 2012, depois de sobreviver ao terremoto que devastou o Haiti em 2010, Gloriane afirma que o racismo tem sido o maior empecilho para que ela consiga se estabelecer e reconstruir a vida na cidade que escolheu como lar.
Desde que chegou ao Brasil, Gloriane já trabalhou como empregada doméstica, cozinheira, zeladora, entre outros serviços. Mas o sonho de empreender sempre pulsou mais forte. E com muita dificuldade, ela conseguiu montar o restaurante ‘Guloseimas da Gloriane’, na Zona Norte de Manaus. Foi então que ela conheceu de perto a vivência opressora que muitos refugiados enfrentam – o preconceito racial.
“Eu fiz vários cursos no Sebrae, fiz um empréstimo, consegui regularização pela prefeitura e comecei a vender comida aqui. Desde 2018 que venho sofrendo nesse estabelecimento, porque eles [vizinhos] brigavam comigo, me chamavam de preta. Dizem que eu vou fazer o lugar virar ‘feijoada’, porque vou colocar muito preto como no Mutirão, sabe que lá no Mutirão tem muitos haitianos vendendo legumes”, relata.
De um país de maioria negra, Gloriane afirma que não sabia o que era discriminação racial até chegar ao Brasil.
desabafa.
Há meses vivendo sem energia elétrica
Com a perseguição e os roubos constantes relatados por ela, Gloriane afirma que começou a acumular prejuízos financeiros insustentáveis. A situação piorou ainda mais durante a pandemia. Em agosto, ela teve o fornecimento de energia elétrica da sua casa interrompido por inadimplência.
Porém, ela alega que as duas contas que não foram pagas, em torno de R$ 500 e R$ 800, eram falsas. “A gente não pagava esse valor, e de repente veio assim. Eu falei com uma amiga advogada e entrei na Justiça, mas ela disse que os processos estavam mais lentos por causa da pandemia. E eles foram lá e cortaram minha luz mesmo durante a pandemia e com o decreto”, afirma a haitiana, que vive há nove meses sem energia elétrica em casa.
Três meses depois, o estabelecimento comercial dela também teve o fornecimento de energia elétrica interrompido. A concessionária de energia afirmou que a ligação era irregular. Porém, Gloriane alega que desde 2018, sofre constantemente com roubos da fiação elétrica, e por conta disso, recebeu várias visitas dos agentes para fazer religação e nunca havia sido detectada irregularidade.
Gloriane Aimable Antoine afirma que já teve por várias vezes a fiação elétrica de seu estabelecimento roubada (Foto: Arlesson Sicsu/Free lancer)
Sem energia elétrica, Gloriane sofreu novos roubos, onde levaram itens essenciais para o funcionamento do ponto comercial. “Eu desconfio que sejam pessoas daqui de perto mesmo que querem atrapalhar quem chegou para sobreviver. A discriminação é tão forte que não consigo viver despercebida na sociedade”, desabafa.
Tentando recomeçar
Para tentar reabrir o restaurante, regularizar a situação da energia elétrica e pagar contas essenciais, uma amiga de Gloriane lançou uma campanha na internet. Em um vídeo, ela pediu doações para Gloriane tentar recomeçar a vida e conseguiu reunir algumas doações.
“Enquanto ela estava me ajudando, com uma liminar eu consegui a energia de volta, consegui pagar a taxa de água que estava devendo, tudo isso para recomeçar. Já estava fazendo a troca de pintura, a gente até fixou o dia 9 pra reabrir. E o que aconteceu? O ladrão passou mais uma vez. Mas não é só uma vez, é desde 2018 que isso acontece”, disse.
Para Gloriane, o padrão exigido e utilizado pela concessionária de energia facilita a ação dos ladrões e deixa no prejuízo o consumidor. "Se fossem eles que dessem os fios toda vez que o ladrão levasse, eles já usariam outro padrão que evitasse isso. Essa é a situação que a Amazonas Energia me colocou, e a população também está contribuindo para ficar atrapalhando a minha vida”, criticou.
“Ninguém deixa a sua terra para vir à terra do outro e receber esse tipo de tratamento. Se eu soubesse que era assim que funcionava, eu nunca deixaria o meu país. Se fosse pra morrer lá eu morreria junto com o resto do povo. Aqui tem muitas pessoas legais, mas tem tanta gente ruim que encobre as pessoas boas”, desabafou.
“Se eu fosse sozinha aqui eu nem ia sentir pena de nada, só pegava minha mochila e saía correndo. Eu estava me plantando aqui pensando que amanhã poderia ser melhor. Até hoje, com tudo o que eles estão fazendo, eu espero um amanhã melhor. Mas eu não sei, eu já tô perdendo a esperança. Me desculpa”, encerrou emocionada.
Questionada sobre o caso de Gloriane, a Amazonas Energia se limitou a reforçar o perigo das ações de furtos, mas não respondeu se faria alguma ação para resolver o problema da haitiana. Confira a nota na íntegra:
“A Amazonas Energia reforça que estas ações de furto de cabos elétricos apresentam risco de morte por choque elétrico, além dos transtornos causados a população com interrupções e oscilações no fornecimento de energia.”