Refugiados

Mais da metade dos venezuelanos em Manaus não conhece as leis trabalhistas

Pesquisa realizada pela Acnur e outras entidades fez o perfil socioeconômico desses refugiados

Waldick Júnior
28/05/2022 às 08:32.
Atualizado em 28/05/2022 às 08:32

Representantes da Acnur, do Instituto Pólis e da Associação de Voluntários para o Serviço Internacional divulgaram resultado da pesquisa sobre refugiados em Manaus (Foto: Arlesson Sicsu/Free lancer)

Um estudo divulgado nesta semana apontou que mais da metade (58,5%) dos refugiados e migrantes venezuelanos de Manaus não conhece as leis que asseguram os direitos e deveres trabalhistas no Brasil. A pesquisa foi realizada pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur), Instituto Pólis e Associação de Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI), e buscou desenhar o perfil socioeconômico dessa população na capital do Amazonas.

Para chegar ao resultado, os pesquisadores realizaram 419 entrevistas em outubro de 2021, o que resultou em 1.506 pessoas ouvidas direta ou indiretamente (quando um parente repassava informações). Atualmente não há um número exato da quantidade de venezuelanos em Manaus ou no Amazonas, mas a plataforma R4V, ligada à ONU, estima uma população de quase 40 mil em todo o Estado. 

“Esse dado do desconhecimento sobre a CLT reflete exatamente a falta de informação. [Entre esses venezuelanos] há uma necessidade e uma busca desesperada por trabalho, porque é a sobrevivência que está em jogo, mas frequentemente nesse processo de busca, apesar dos esforços das instituições, ainda é grande o desconhecimento em relação aos direitos e deveres do trabalho”, aponta a diretora da Pólis Pesquisas, Bertha Maakaroun.

Ainda de acordo com o estudo, 35,1% dos entrevistados disseram conhecer pouco sobre os direitos e deveres dos trabalhadores no Brasil. Outros 5,5% afirmaram conhecer “o suficiente” sobre o mesmo tema e 1% escolheu a opção “conheço muito bem os direitos e deveres dos trabalhadores no Brasil”. 

O anúncio dos dados apresentados pelo estudo ocorreu na sede do Ministério Público do Trabalho do Amazonas (MPT-AM) e contou com a presença de uma série de parceiros da Acnur em Manaus (veja abaixo). Dentre os destaques do evento, esteve a enfermeira venezuelana, Damelys Fajardo, de 45 anos. Ela veio sozinha para o Brasil em junho de 2018 após sofrer perseguição política no país venezuelano.

‘Sortuda’

“Cheguei em Manaus e fui atendida pela Cáritas [entidade da igreja católica]. Comecei a vender café na rua para ter algum dinheiro, mas depois de três dias eu consegui um trabalho como cuidadora de uma criança. Agora meu primeiro trabalho formal mesmo foi em dezembro daquele ano e é onde estou até hoje. Fui muito sortuda”, conta a enfermeira, agora empregada em uma empresa privada de saúde. 

Apesar disso, Damelys faz questão de ressaltar que seu caso é uma exceção entre muitos venezuelanos, em especial por ela não ter migrado com dependentes, como idosos ou crianças. “Seria muito mais difícil procurar emprego ou fazer sacrifícios como deixar de comer para pagar um curso, como eu fiz”, conta. 

Sobre os direitos trabalhistas do Brasil, a venezuelana diz sempre ter sido muito curiosa, o que a fez buscar mais informações. “Toda dúvida que eu tinha, ia até a Cáritas. Lá tem uma advogada que me esclarecia tudo. Por exemplo, eu sabia que no meu primeiro trabalho eu estava sendo explorada. Sabia que o salário de R$ 500 por mês era errado, mas eu precisava daquele dinheiro”, lembra Damelys.

Serviços

Durante o estudo, os pesquisadores também questionaram os venezuelanos sobre em qual área gostariam de trabalhar, se pudessem escolher. Quase metade (46,3%) respondeu que atuaria em qualquer setor que lhe desse uma oportunidade. Para além desse percentual, chama a atenção que apenas 7,6% dos entrevistados escolheram a opção “indústria” ao serem questionados, ainda que essa seja a principal matriz econômica do Amazonas através da Zona Franca.

“As organizações que trabalham em apoio [à procura de trabalho para venezuelanos] têm dificuldade de firmar parcerias com parte da indústria. A nossa pesquisa qualitativa indica que essas empresas têm lógicas de contratação com sistemas próprios, seja de recursos humanos ou processos de indicação”, explica a pesquisadora Bertha. 

A atividade econômica mais escolhida pelos venezuelanos foi o setor de serviços em estabelecimentos de alimentação e hotéis, 24,1%. As outras opções apontadas foram limpeza e manutenção (3,8%), construção civil (3,6%), serviços domésticos (2,9%), comércio e varejo (2,9%) e outros (6%).

Mulheres no comando

A pesquisa da Agência da ONU para Refugiados (Acnur), Instituto Pólis e Associação de Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI) apontou também que mais de um terço (1 a cada 3) das famílias venezuelanas em Manaus são monoparentais, cujo responsável é uma mulher.

O impacto do mundo do trabalho nessas famílias é ainda maior, pois muitas vezes as mulheres não têm com quem deixar os filhos ou algum parente idoso que tenha migrado também. Segundo a pesquisa 15,2% das venezuelanas não conseguem procurar trabalho porque são as principais cuidadoras de algum parente. Esse percentual é de 0% entre os homens. Ou seja, nenhum dos entrevistados do sexo masculino alegou não conseguir buscar emprego por cuidar de algum parente. 

Para a procuradora-chefe do Ministério Público do Trabalho (MPT-AM/RR), Alzira Melo Costa, os dados são essenciais para que todos os atores envolvidos nesse cenário possam se movimentar e ajudar os migrantes. Ela é também coordenadora colegiada do Grupo de Trabalho Nacional sobre Fluxo Migratório da Venezuela. 

“O Ministério Público do Trabalho financiou, junto do Instituto Hermanitos, um projeto piloto para inserção dessas mulheres no mercado de trabalho, inclusive, possibilitando que elas levassem os filhos para a capacitação e recebessem um apoio de custo e cesta básica”, afirma ela. 

Composição familiar

Em média, as famílias venezuelanas na capital do Amazonas são formadas por 3,6 membros. A maioria é biparental, em outras palavras, com dois responsáveis (44,9%), seguido de monoparentais (38,2%). As pessoas que migraram sozinhas são 10,3% e 6,7% são casais sem filhos.
Em geral, todos os dados considerados precários para os venezuelanos são ainda piores quando a mulher é isolada do homem nas pesquisas. Por exemplo, enquanto 7,7% dos homens têm empregos formais, o que já é ruim, o percentual para a mulher nessa mesma categoria é de 2,9%. 

Mesmo os empregos regulares, porém, sem carteira assinada, são mais comuns entre homens (35%) do que entre mulheres (14,5%). Por outro lado, são as venezuelanas que trabalham mais como vendedoras ambulantes (24,3%), em comparação aos homens (16,8%). 

Média salarial

Venezuelanos com documentos (CPF, RG, carteira de trabalho e outros) recebem, em média, R$ 902 nos trabalhos. Já os que não têm documentos são remunerados, em média, com R$ 654. 

Pouco mais da metade (51,3%) dos entrevistados afirmaram não ter procurado emprego no último mês. O outro lado procurou emprego ao menos uma vez por semana ou sem regularidade semanal.

A maior parte dos venezuelanos (51,3%) tem o ensino médio completo, embora aleguem dificuldades para validar o diploma do outro país no Brasil. Ainda, 8,4% tem graduação e 11% são técnicos universitários. 

  

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