Amigos

As relações de amizade oscilam mesmo, mas nunca houve tamanha pressão para tanta instabilidade.

Marcus Lacerda
13/11/2021 às 10:50.
Atualizado em 24/03/2022 às 21:46

Nos piores momentos da pandemia, ganhei livros de velhos amigos. Como não conseguiam expressar em palavras sua solidariedade, deixavam na porta do meu prédio um livro que acreditavam se comunicar comigo, de alguma forma. Um deles era a biografia de Ayn Rand, a filósofa e escritora de origem judaico-russa, radicada nos Estados Unidos. Rand ficara famosa por defender a ideia de que o altruísmo não existe.

Sua ideia, em princípio chocante, vem a partir da premissa de que o altruísmo é quando renunciamos a algo que nos favorece, em favor do outro, automaticamente nos prejudicando. Ou seja, o altruísmo não é exatamente igual à solidariedade ou simplesmente ajudar uma pessoa necessitada. Segundo ela, este não é um sentimento humano, e nenhum de nós se prejudica de graça. Rand, com sua filosofia, justificava o sistema capitalista, e desmontava a farsa ideológica do racional comunista, em que todos se doavam pelo bem coletivo. Com sua ideia de egoísmo racional, chocou plateias do mundo inteiro. Afinal, estava certa ou errada?

Em momentos de isolamento social, mortes abundantes, crise econômica, Ayn Rand nunca foi tão atual. O isolamento social, que foi a única forma de evitar o espalhamento do vírus, apesar de método medieval, dividiu opiniões e logo se criou uma dicotomia entre preservar a economia ou a vida. Sem ainda saber a dimensão do massacre que se seguiria, houve, de início, opiniões contundentes sobre manter os empregos das pessoas, sem os quais muitas delas também morreriam. O mesmo sucedeu com as máscaras. Numa retórica de que não havia provas de que máscaras protegiam contra a infecção, por que obrigar os cidadãos a usá-las? Belos jovens se recusavam a cobrir parte do rosto, para proteger os idosos. Quando chegou o primeiro imunizante, o medo individual de um produto ainda recente no mercado fez com que várias pessoas, no mundo todo, se recusassem a receber a vacina, ainda que, obviamente, ela tenha controlado a pandemia. E o que diria Rand sobre as amizades?

Amizades de longas datas foram desfeitas, novas amizades foram construídas. Maior ainda foi o número de inimigos que consegui fazer nos últimos anos, muitos deles sem mesmo conhecer pessoalmente. Toda esta remodelagem nas relações aconteceu porque passamos a pesar mais sobre os valores que admiramos e desprezamos. Alguns viveram momentos terríveis, e não tiveram a velada solidariedade de amigos que consideravam íntimos. Outros, ao contrário, apenas como expectadores de um show de horrores, passaram a emitir opiniões públicas sobre o que nunca viveram, gerando revolta nos familiares das vítimas fatais.

As relações de amizade oscilam mesmo, mas nunca houve tamanha pressão para tanta instabilidade. Nos grupos das redes sociais, nunca se viu antes tanta decepção e mágoa em relação às manifestações públicas de amigos que compartilharam um dia nossa casa, nossa mesa, ou até nossa cama. Nesta nova reorganização afetiva, casais se separaram, colegas de trabalho se atacaram publicamente, e até nas escolas, crianças debateram sobre as opiniões radicais de seus pais.

Do amigo de quem recebi um livro biográfico sobre o pintor haitiano Jean-Michel Basquiat, ouvi muitas vezes que as amizades precisam ser cultivadas, regadas e adubadas, como uma roseira frágil. Foi muito duro cuidar destes amigos, na pandemia, que tanto abusaram da intimidade e da certeza de que amizades nunca acabam. Alguns deles, se sentindo convidados ao sucesso imediato, desprezaram conselhos e amizades duradouras, por um segundo de fama. Outros, sofrendo, deprimidos, esconderam-se, com medo de serem julgados.

Sem olhar nos olhos, frases descontextualizadas, digitadas tarde da noite, no WhatsApp, afastaram temporariamente quem antes nos dava uma razão para existir. Quando a pandemia passar, mesmo que o livro em papel ainda seja considerado antiecológico, mandarei livros de presente àqueles que se afastaram de mim. Sem nenhum julgamento de valor, direi a eles que me importo, e que a pandemia acabou. Amigos verdadeiros estão entre os critérios para uma boa qualidade de vida, além de serem fundamentais para a boa saúde cardíaca. Sem eles, não vale a pena seguir vivendo ou escrevendo. Não sei se existe uma vida após a morte física, mas quero crer que as amizades após a COVID-19, sim.

A imagem que ilustra esta crônica é o quadro “Velho Pastor do Chefe Mouner”, de Edwin Landsee (1802-1873)

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