Máscaras: de representação da condição humana a obrigação sanitária

Por Adalberto Retto Jr*

Artigos
02/03/2022 às 20:41.
Atualizado em 24/03/2022 às 21:44

É importante ressaltar a sutil ligação entre carnaval e Páscoa, já que a celebração do carnaval é anterior à da quaresma (e, portanto, não tem data fixa), e também que o significado mais aceito da palavra carnaval contém uma alusão à ocasião religiosa: do latim carnem levare, eliminar a carne, que indica precisamente o rito da abstinência da carne no período quaresmal.

Mas as semelhanças com a celebração religiosa terminam aqui: desde sempre o carnaval foi um enclave de liberdade ou dias de “loucura saudável”. Nesses dias, cada um podia expressar sua personalidade através de uma máscara, um disfarce, interpretando um papel talvez distante de si mesmo, mas que fica em sigilo, como um sonho ou um desejo.

As origens da festa são encontradas em várias tradições: dos ritos dionisíacos pagãos na Grécia antiga, às festas saturnais romanas ou às populações arcaicas, que se divertiam e festejavam buscando apaziguar os espíritos dos mortos com expedientes através dos quais estes teriam a chance de voltar à terra,  em troca de sua boa vontade para ajudar nas colheitas fartas.

Um rito de passagem entre o ano velho e o novo, superando as dificuldades sofridas anteriormente e preparando-se para uma nova fase da vida, mais rica em prosperidade. Sempre foi assim, em formas que se renovam ao longo do tempo e se atualizam, mas que mantêm um elemento constante: o uso da máscara ou do mascaramento, como representação da condição humana. 

A máscara nem sempre foi um disfarce, mas como objeto teatral era goliardersca, assumiu um forte valor simbólico e expressa um ritual de distanciamento da identidade cotidiana. Assim, também traz em si o risco de uma perda: não ser reconhecido pode significar também não se reconhecer; quase um salto no vazio de um mundo tão fantástico quanto irreal.

Mas qual o significado da máscara após o advento da pandemia, quando ela é peça obrigatória para saúde pública e quando a realidade das redes sociais como Facebook, Instagram ou TikTok se caracteriza por um mascaramento cotidiano na tentativa de mostrar-se diferente de si mesmo para receber aplausos e consensos virtuais?

O artificio do mascaramento permite sair do presente até mesmo do ponto de vista social, ganhando a liberdade fictícia de ser outro; permite ter licenças, inclusive aquela tolerada em uma realidade imaginária, para zombar impunemente dos poderosos do momento. A condição, porém, é a de ter o rosto coberto e, portanto, não ser reconhecido. Vale ressaltar, que antigamente nos festejos de carnaval, os escravos podiam fingir ser livres e os nobres podiam ser ridicularizados, então a brincadeira e o escárnio dos poderosos tornam-se o enredo recorrente destas celebrações, juntamente com a exaltação dos costumes e hábitos do passado.

Entretanto a situação de festa com características de brincadeira e diversão, ou de libertação dos condicionamentos sociais e das regras vigentes, até a zombaria dos poderosos da época, hoje deve ser lida de outra forma, porque se no passado a máscara era o único ato libertador permitido, hoje a possibilidade de autoexpressão e de expressar a personalidade através da roupa é prática cotidiana, pois jovens contam suas histórias com um corte de cabelo ou um determinado visual. 

Logo, vestir-se nos dias de carnaval não é mais aquele ritual obrigatório para quem queria "enlouquecer" e sentir-se livre, mas ainda é um momento de abandono máximo, um território neutro para deixar  na gaveta por três dias  a máscara metafórica que, muitas vezes, somos obrigados a usar todos os dias – o rosto anônimo e nunca completamente sincero – que se propõe ao mundo para esconder a fragilidade que tememos que seja transformada em alvo.

É necessário, portanto, desenvolver uma nova interpretação do mascaramento não apenas físico, mas também psicológico, que nos faça compreender plenamente a necessidade ainda intacta de brincadeira, engano ou ilusão que envolve quem usa máscara em dias de carnaval.

Um valor mágico, portanto, mantido ao longo dos séculos, mas com um significado alterado ao longo do tempo: não mais um rito propiciatório para agradar aos espíritos, mas instrumento de uma festa particular, durante a qual há uma espécie de suspensão da experiência diária para entrar em outra realidade e experimentar todo o seu potencial.

É por isso que ainda hoje, numa sociedade aparentemente livre, transgressora e desprovida de regras, o carnaval ainda tem um encanto único, antigo e eterno, encerrado nas palavras de Oscar Wilde "Todo homem mente, mas dê-lhe uma máscara e ele será sincero".

* Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo FAUUSP e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Istituto Universitario di Architettura di Venezia

Foto: Ina Fassbender / AFP. Tirada em 28/02/2022 em marcha pela paz que substituiu famoso evento de Carnaval na cidade de Colônia/Alemanha

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