O ex-comendador do futuro

Que tenha me servido de consolo: talvez esta foi minha maior homenagem: a ‘desomenagem’.

Marcus Lacerda
05/03/2022 às 20:11.
Atualizado em 24/03/2022 às 21:43

A Academia Brasileira de Ciências (ABC), fundada em 1916, reúne cientistas de todas as áreas do conhecimento e, junto com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), não apenas debatem e articulam a ciência nacional, mas indicam ao Presidente da República, de forma conjunta, personalidades brasileiras e estrangeiras candidatas a receber a Ordem Nacional do Mérito Científico, como forma de reconhecimento das suas contribuições científicas e técnicas para o desenvolvimento da ciência no Brasil. A última indicação aconteceu em 2019, mas tardou a ser divulgada por causa da pandemia. 

Estávamos em 2021, 200º ano da Independência e 133º ano da República. Recebi pela manhã o telefonema de um amigo da ABC congratulando-me pelo grau de comendador. Ignorando ainda a grandeza da honraria, li, com surpresa, a publicação assinada pelo próprio grão-mestre da ordem, o presidente da República. 

Não tardou muito para que colegas de todo o Brasil começassem a me parabenizar pela inesperada e insólita insígnia. Afinal, coordenei, em Manaus, o primeiro estudo que sinalizou para a possível ineficácia da cloroquina em pacientes com Covid-19 grave. Ainda nos primórdios da pandemia, em abril de 2020, a publicação causou constrangimento e furor entre os que consideravam a droga antimalárica a panaceia que poria fim à peste. O resultado foi a disseminação de notícias falsas sobre o estudo para a população, que linchou publicamente o referido grupo de pesquisa. Considerei por alguns instantes a possibilidade de que se tratava de algum golpe da internet, ou que estava participando, despercebidamente, de um desses programas em que a pessoa é vítima de uma ‘pegadinha’.

Sucede que o decreto era verdadeiro. Dele constavam os nomes de 32 cientistas, honrados em receber reconhecimento de um presidente que tanto tinha nos insultado e renegado. Chegamos até a acreditar que aquele pobre homem havia reconhecido seus erros, e claramente, fazia, em tempo, o necessário mea-culpa.

Em seguida, asseclas digitais, nas redes sociais, movimentaram um debate sobre o mérito da maior honraria que pode ser conferida a um cientista no Brasil. Em uma pós-triagem tardia e extemporânea de personalidades alinhadas ao governo, os rumores de que o mandatário da nação não havia lido com rigor sua lista de homenageados pairou por ser confirmada, até que um novo decreto foi publicado 48 horas depois, tornando sem efeito, explicitamente, a minha indicação e a da amiga amazônida Adele Benzaken, outro desafeto velado do atual governo.

A imprensa, ensandecida, quis ouvir meus comentários sobre o ocorrido. Ora, não devia eu explicações sobre a ex-futura homenagem, mas sim o grão-mestre da ordem, ou qualquer outro assessor de menor importância do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Sem nenhuma explicação pública, dois cientistas que dedicaram sua vida à pesquisa em Saúde Pública foram sumariamente excluídos de uma lista de personalidades cuidadosamente indicadas por seus pares.

Os demais cientistas, solidários, motivaram-se a repudiar o decreto retificador, e renunciaram às suas próprias homenagens, em carta pública, que correu o planeta, traduzida para vários idiomas, em distintos veículos de comunicação. Foi uma das maiores manifestações de agregação da Ciência nacional. 

E foi assim que ganhei fama: por ter descoberto que uma medicação não funcionava e por não ser comendador - um caminho tortuoso e claramente adverso dos meus ídolos, que descobriram a cura de doenças ou receberam homenagens de grande reputação. Mas neste caso, com um diferencial, que só mesmo Chico Buarque de Hollanda soube bem definir, ao ter a entrega do seu prêmio Camões adiado pelo mesmo presidente: ‘A não assinatura no diploma é para mim um segundo prêmio Camões’. Que tenha me servido de consolo: talvez esta foi minha maior homenagem: a ‘desomenagem’.

À imprensa, uma única declaração que havia ficado pendente: ‘Não foi desta vez, infelizmente, mas sigo trabalhando com mais afinco e determinação, na esperança de ainda merecer um dia a honrosa insígnia, que pertence ao Brasil, e não aos tempos insignificantes. Se quero ser comendador? Sim, mas não agora, no futuro...’

 

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