Podemos buscar inspiração no Whanganui, rio sagrado dos Maori, primeiro do mundo a receber personalidade jurídica para ter seus direitos respeitados
Rio Negro banha a Terra Indígena Médio Rio Negro I, em São Gabriel da Cachoeira (Beto Ricardo/ISA)
O Rio Negro é o maior rio de águas pretas do mundo e o sétimo maior em volume de água. Chamado de rio de leite pelos povos originários do Noroeste amazônico, é o rio da vida, o rio por onde a cobra canoa navegou dando origem a povos originários no Amazonas, como os Tukano, Desano, Piratapuia, Tuyuka, Wanano e outros. Em seu curso de cerca de 1.700 quilômetros, que nasce na Colômbia e chega ao Brasil, existem “casas sagradas”, nas quais devemos ter cuidado e respeito se quisermos manter o equilíbrio da vida no mundo.
Na Nova Zelândia, em 2017, o rio Whanganui, terceiro maior do país e vital para o povo Maori, ganhou personalidade jurídica, dada pelo Parlamento neozelandês por reconhecer a relação do rio com os Maori. “A nova legislação é um reconhecimento da conexão profundamente espiritual entre o iwi (tribo) e o seu rio ancestral Whanganui. Agora, o rio passa a ter sua própria identidade jurídica, com todos os direitos e deveres correspondentes”, comemorou o então ministro da Justiça neozelandês, Chris Finlayson, em 2017.
Para a lei neozelandesa, inédita no mundo, “o rio é um ser vivo único que vai das montanhas ao mar, incorporando seus afluentes e todos os seus componentes físicos e metafísicos". Por isso, deve ser tratado como um indivíduo e ter seus direitos respeitados. Após essa conquista, na Índia, o gigante rio Ganges, sagrado para os hindus, também ganhou status de pessoa jurídica, na qual a justiça indiana declarou: “é uma entidade viva com o estatuto de uma pessoa legal”. Os indianos esperam, assim, ter mais força para livrar o Ganges da poluição que vem degradando e ameaçando seu curso.
No Amazonas, convivemos com esse milagre vivo que é o Rio Negro. Suas praias de areia branca, seus igapós, pedras e ilhas, formam paisagens paradisíacas, responsáveis por boa parte do turismo, lazer e beleza do estado. Na capital temos o encontro das águas, um dos símbolos maiores da Amazônia e do Brasil, com os dois gigantes se encontrando e formando o maior rio do mundo: o Amazonas. Porém, para nosso desencanto, presenciamos o avanço da ilegalidade e do profundo desrespeito e descaso com a vida do Rio Negro e tantos outros rios amazônicos. Um verdadeiro show de horrores e de ignorância diante de tanta vida em abundância.
Uma das grandes ameaças ao Negro que mais cresceu nos últimos anos é o garimpo ilegal. Com o desmonte dos órgãos de fiscalização e controle, como o Ibama e a Funai, o Negro e alguns de seus afluentes, vêm sendo cada vez mais invadido por balsas de garimpo, que sequer respeitam as terras indígenas demarcadas e as comunidades que vivem nas suas margens. Em busca de ouro lançam mercúrio nas águas do Negro, contaminando seus peixes, e levando perigo à sobrevivência de milhares de indígenas e ribeirinhos que dependem diretamente de suas águas para viver.
Além disso, todos nós que vivemos no Amazonas e temos a sorte de nos banharmos nas águas do Negro, estamos ameaçados pela contaminação de suas águas por metais pesados oriundos de atividades ilegais predatórias, que mais parecem sair da Idade Média. Em nenhum país sério do mundo, as autoridades do Estado permitiriam tamanha agressão a um patrimônio natural deste porte, responsável por imensa geração de renda pelo seu potencial turístico, assim como por sua sacralidade como um corpo vivo, cuja história se relaciona com os povos originários da Amazônia.
A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), que atua em defesa das 750 comunidades e dos 23 povos indígenas rionegrinos, vem denunciando seguidamente e enviando ao Ministério Público Federal (MPF-AM), uma série de fotos, vídeos e relatos sobre essas invasões, grande parte delas ocorridas na região do Médio Rio Negro. O Rio Negro é reconhecido como maior área úmida do planeta de interesse internacional, denominado sítio Ramsar pela Convenção de proteção das áreas úmidas mundiais. Sua bacia é uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta e na região da Cabeça do Cachorro (Alto Rio Negro) se formam os grandes rios voadores, nuvens que levam chuva para demais regiões do país, promovendo o equilíbrio climático e colaborando com a produção agrícola brasileira.
Seja na perspectiva dos povos da Amazônia ou dos Maori na Nova Zelândia, os valores indígenas de ligação com a natureza - numa relação ética de reciprocidade e de dimensão do sagrado diante da criação - são essenciais para que possamos resolver os grandes problemas ambientais que enfrentamos. O nosso Rio Negro pede socorro e todos nós que já nos banhamos em suas águas pretas devemos nos comprometer a protegê-lo. É no mínimo um dever ético com as nossas crianças, jovens e as gerações que estão por vir.
*Juliana Radler é jornalista com especialização em meio ambiente e analista de políticas socioambientais do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA)