Os filhos do Andirá

Em uma manhã calma, quando os dentistas já extraíam os primeiros dentes das bocas malcuidadas, as redes eram lavadas com água fervente, por conta da minha primeira investigação epidemiológica, que culminou na descoberta de um surto de sarna, no alojamento masculino

Marcus Lacerda
11/12/2021 às 16:24.
Atualizado em 24/03/2022 às 21:44

Saímos bem cedo do antigo terminal do Aeroporto Brigadeiro Eduardo Gomes, de onde partiam as aeronaves com destino a Parintins. De lá, um barco nos levou a Barreirinha. Desembarcamos, horas depois, na Escola Agrícola São Pedro, um oásis de civilização ocidental em meio à floresta, fundada em 1972 pelo padre italiano Enrico Uggè.

Meu papel principal, como jovem médico residente, era o de traduzir o inglês para o português, para voluntários norte-americanos, o que não me impediu de fazer alguns atendimentos médicos. Eu trazia frescos na memória os valores e os ideais do recente juramento de Hipócrates.

Em uma manhã calma, quando os dentistas já extraíam os primeiros dentes das bocas malcuidadas, as redes eram lavadas com água fervente, por conta da minha primeira investigação epidemiológica, que culminou na descoberta de um surto de sarna, no alojamento masculino. Chegou-me, então, um menino de um ano de idade, acompanhado dos pais. Aparentava ter ainda menos idade, quando comparado às referências que aprendi na escola de Medicina. Com a ajuda de um tradutor de Sateré para o português, entendi que o pequeno ainda sem nome tinha diarreia. Seus olhos eram secos, e a face abatida não lhe deixava chorar.

Preparamos soro caseiro com água filtrada, sal e açúcar. Uma jarra foi deixada ao lado dos pais, orientados a dar pequenos goles, a cada trinta minutos. No fim da tarde, voltei à maloca improvisada. A jarra estava cheia e a criança com a pele ainda com menos turgor. O agente de saúde me chamou a um canto: “Doutor, eles acham que quanto mais líquido se dá por cima, mais a criança perde por baixo, por isso pararam de dar o soro, desde cedo”.

Ainda um pouco atordoado, corri em direção ao chefe da expedição e disse a ele que precisávamos seguir para o hospital de Barreirinha imediatamente, a criança estava com desidratação grave. Na escola não havia uma forma de infusão rápida de líquidos, pela veia ou pelo osso. O sol já caía, e o padre missionário, que dava as ordens, mandou providenciar combustível extra.

Nesse ínterim, com a ajuda de uma vela, na capela, o padre deu o sacramento do batismo. Os pais se emocionaram, com um choro triste. Em meio à cerimônia improvisada, voluntariei-me como padrinho do jovem Sateré. Após a unção com o santo óleo dos catecúmenos, partimos. No pequeno barco, com um motor barulhento, eu e a mãe do menino nos sentamos no banco de trás. À frente, o pai e um prático. Raios e trovões anunciaram uma tempestade, na madrugada fria. O prático quis encostar o bote na margem. Eu dei a ordem para prosseguir, ainda que para isso tivéssemos de cortar as ondas pela frente, para evitar que aembarcação virasse, em meio ao forte banzeiro.

Uma lona nos protegia. Por baixo dela, a mãe me entregou a criança para que eu verificasse seus sinais vitais. Mas a tempestade nos pegou de jeito, e as águas negras do Andirá se misturaram com as pesadas nuvens no céu. Mais adiante, a mãe entoou um cantotriste. Peguei meu afilhado no colo, mas não encontrei mais vida nele. As lágrimas que caíram do meu rosto se misturaram aos pingos grossos e cortantes da chuva tropical.

Chegamos a Barreirinha junto com o primeiro raio de sol do novo dia. Eu, esgotado, dormi em uma cama qualquer, na casa paroquial, após a amarga derrota. Aquela fora minha primeira consciência de que compatriotas ainda morriam por diarreia aguda, em um paísimpossível de ser traduzido para qualquer outra língua. Como meu breve afilhado, indefeso e inocente, eu também virei um filho do Andirá, naquele dia. Mesmo sem conseguir salvá-lo, fui condenado a renascer.

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