Os Homens Invisíveis

A Matriz é um local turístico, mas naquela ocasião não havia visitantes, apenas a miséria humana em todo o seu “esplendor”

Orlando Câmara
21/02/2022 às 12:01.
Atualizado em 24/03/2022 às 21:44

Há cerca de dez dias um vídeo gravado de celular flagrou uma dupla assaltando turistas que posavam para uma foto em frente ao Mercado Adolpho Lisboa. O fato, até então pontual, ganhou uma repercussão sem precedentes, a ponto de anunciarem a prisão dos suspeitos dias depois, como um grande triunfo. “Um lugar turístico” bradavam as redes digitais, emprestando ao fato um forte agravante. Fiquei me perguntando se aquele tipo de delito, quando distante de lugares de interesse turístico, perde a importância!? Mas “lugar bom para o visitante é o lugar bom para o seu cidadão”: não é esse o conceito clássico? 

Se fosse postado um vídeo dos assaltos às paradas de ônibus, no centro, alcançaríamos o mesmo engajamento? Ou não haveria “glamour”, pois achamos que os turistas não pegam ônibus? Ou já tornamos uma “paisagem” a violência a que a população usuária do transporte coletivo é submetida diariamente e, por isso mesmo, sem interesse de repercussão nas redes? A gente acaba refletindo sobre o que relega à invisibilidade fatos importantes e o que promove outros de menor significância à pauta prioritária da comunicação digital. O que?

Essa semana tive que ir, em horário comercial, à Eduardo Ribeiro e fotografei mendigos dormindo na rua, na área entre a Vinte Quatro de Maio e a José Clemente, perto da antiga agência da Caixa. Eles estão em muito maior quantidade. Publiquei o flagrante com a legenda “a cidade invisível”. Passei então a receber, no resto da semana, fotos  de diversas pessoas, retratando diferentes partes do centro da cidade, com suas dores não publicadas. Uma delas, enviada pelo meu amigo Alexandre Moreira, dava conta de um acampamento no chafariz da Praça da Matriz, com roupas estendidas sobre as esculturas. Cenas da cidade invisível.

Mas espera aí, a Matriz é um local turístico! Mas não havia visitantes, apenas a miséria humana em todo o seu “esplendor”. As pessoas passam por ali diariamente, às centenas, talvez aos milhares… mas a elas aqueles seres humanos estão invisíveis. Aquela tragédia recente que tende a se tornar crônica é invisível. E se eu argumentar que os sem teto dormem na esquina oposta à do Teatro Amazonas, ajudaria a levar atenção a eles? Minha amiga Flávia Ignez, resume o resultado numa frase: “ - Vão expulsar as pessoas daí, simples”. 

Lembrei de um samba do Chico, o Buarque, que eu tenho especial apreço, que narra uma tragédia da Joana de Tal. No último verso, a conclusão do episódio: “a dor da gente não sai no jornal”! #Pensa

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