Quantos mortos vamos celebrar neste carnaval?

Por Taciano Soares, ator, diretor, produtor cultural, professor universitário, Mestre em Cultura e Sociedade e Doutorando em Artes Cênicas pela UFBA

Taciano Soares
14/02/2021 às 18:53.
Atualizado em 24/03/2022 às 21:57

(Foto: Reprodução)

Brasil. Fevereiro. Carnaval. Pandemia. Aproximadamente 240 mil brasileiros mortos. O que podemos apreender a partir de tudo o que temos vivido nos últimos 11 meses?

A maior festa popular do mundo é uma entre tantas outras festividades interrompidas e/ou suspensas em função do desastre que vivemos. Em contraposição a isso tem crescido, assustadoramente, o número de festas clandestinas e isso nos impele uma reflexão de imediato: Por que a quantidade absurda de mortes provocadas pela Covid-19 parece não ser motivo suficiente para provocar alguma espécie de choque e que faça os brasileiros repensarem seu desejo desenfreado em festejar, alienando-se da realidade acachapante que vivemos no Brasil atualmente?

A música “Todo carnaval tem seu fim”, de Marcelo Camelo, que empresto para o título deste ensaio, fala sobre um “José” que retrata com triste ironia o modo como nos colocamos muitas vezes apáticos a situações bárbaras que a grande maioria da população brasileira convive e que, de alguma forma, aparenta uma espécie de conformismo, acomodação. Essa situação não é nenhuma novidade para nós, infelizmente, e podemos visualizá-la facilmente no contexto que a pandemia nos apresentou, desde março de 2020.

O que eu quero dizer com isso? Vivemos em uma sociedade que perdeu a capacidade de sentir e viver o luto pelos seus de forma muito banal. Uma das principais consequências da morte na pandemia é a impossibilidade de realização dos ritos fúnebres (como dito em Antígona – tragédia grega datada em 442 a.C, escrita por Sófocles) e isso nos afastou ainda mais da possibilidade de sentirmos os efeitos da perda e da morte que nos assola. Como a falta de alteridade pôde nos trazer tão longe? Estamos completamente à deriva de uma situação que parece náufraga e, ainda, precisamos compreender aqueles e aquelas que optam por virar as costas para a realidade e comemorar suas vidas, sem se importar com outras perdidas? Ou, melhor, sem pensar que a sua vida pode ser uma próxima vida perdida?

Recentemente, em Manaus, uma família teve seu pedido de realização de uma festa de casamento (com toda a pompa e direitos) vetado pela Justiça. Óbvio, não? Pelo menos estes ainda foram à consulta jurídica para verificar a legalidade de sua celebração em meio a onda fúnebre do país. Mas voltando às clandestinidades: quantas são e até quando lidaremos com elas de forma tão pacífica? Veja, não falamos aqui sobre a celebração do carnaval, organizada, que emprega milhares de pessoas e gera um retorno econômico comprovadamente positivo à economia do país, mas do sentimento de celebração que tem movido pessoas em favor de uma verdadeira violência ao luto alheio.

A filósofa Judith Butler (quem não a conhece, leia, por favor) tem obras que falam sobre a nossa precariedade diante do sistema político do mundo. Corpos que são passíveis e corpos que não são passíveis de luto. A autora fala, entre outras coisas, sobre como a noção de empatia só se dá em um contexto em que nos sentimos ameaçados de tornarmo-nos iguais àquele ou àquela a quem vemos em situação vulnerável. Segundo ela, o indivíduo se alia em solidariedade, com medo de tornar-se igual nas condições que se impõem à vida.

Festejar em tempos de morte seria um sintoma da nossa falta de capacidade de reflexão sobre os efeitos dos impactos individuais, quando coletivizados, em uma sociedade que por natureza é interdependente. Se não for pelo apelo à consciência e respeito ao luto que é coletivo – uma vez que falhamos cotidianamente no modo como nos posicionamos e tratamos os efeitos desta pandemia, que seja pelo medo de ser a próxima vítima do vírus fatal. De uma forma ou de outra é preciso dizer que a festa é fonte de celebração digna e honesta que um povo tem sobre sua coexistência, mas ela só faz sentido se esse mesmo povo encontrar eco na alegria da vida, nas redes de apoio e em uma estrutura política como protetora da vida, cuidando de sua manutenção; diferente desta realidade onde vemos o contrário: uma política de morte institucionalizada que ganha força nas costas de uma folia às cegas.

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