Quase crônica de uma morte não anunciada

Por Liege Albuquerque; a autora é mestre em ciências políticas pela USP e jornalista com diploma da UFAM.

Liege Albuquerque
15/08/2019 às 19:53.
Atualizado em 24/03/2022 às 22:12

Dias depois da morte do meu pai fui ao roadway e fiquei um tempo de olhar perdido sentindo o cheiro do rio. Meu pai era marítimo, aquele era seu mundo, e eu fui lá chorar, e reclamar com ele de não ter avisado que já ia. Não tive tempo de me despedir, nem de conversar mais, no resgate que estava fazendo nos últimos anos de tirar frases menos monossilábicas de meu pai caladão. Encontrei um bom filão, a política, éramos antagônicos e eu queria estar hoje provocando-o por ter votado no capitão.

Saí do hospital na tarde anterior de sua morte como a última pessoa da família a vê-lo vivo na UTI, pedi sua última bênção e prometi trazer água de coco no dia seguinte. No dia seguinte, cedinho, meu irmão me ligou dizendo, com o jeito mais suave possível que uma pessoa pode dar uma notícia daquela, que papai tinha ido embora na madrugada. Foi brusco e chocante como um acidente, afinal ele estava se preparando para uma cirurgia. E eu com a água de coco na geladeira para levar para ele naquela manhã.

Levei meses para me desfazer do choque da não despedida. Na verdade, ainda não passou. Será que passa? Nem o “A Morte na visão do Espiritismo”, de Alexandre Caldini, me deu conforto. E muita gente até bem próxima não entende friamente minha incompreensão sobre o fato, sua morte tão repentina. Naturalizam a morte, mas eu não sou tão espiritualmente elevada.

Mas me importo, isso sim, com o que sua morte tem mudado minha vida. Que culminou na leitura do “A morte é um dia que vale a pena viver”, da médica Ana Claudia Quintana Arantes. Este livro teve um grande impacto sobre mim porque fez parte de uma mudança que tenho feito, gradativa, na minha vida desde a morte de papai, e queria compartilhar com quem se dispuser a ir além do título do artigo.

O livro não me deu conforto, mas me deu uma nova perspectiva de vida, muito mais voltada a não querer nenhuma frase do Epitáfio dos Titãs no meu. Mas talvez você nem precise da morte de alguém que ame para começar a repensar sobre a importância do viver seu hoje com o que os modernos coaches chamam de “atenção plena” ao que você está fazendo, ao olho no olho com quem você está falando, viver na chamada preciosa mindfullness.

Papai não teve essa sorte de uma morte anunciada. E é o que quero na vida, ter tempo e ter a sorte de uma vida e morte tranquilas, com sabor de fruta mordida, só bem velhinha quero ir. E tenho muita pena quando alguém fala “velho” como xingamento em redes sociais. Mal sabem que chegar a ser velho é o maior presente que você pode ganhar de Deus ou do universo, se você não acredita Nele. Quanto mais velho você fica, dádiva, mais chance para encontros e despedidas ao longo da vida, espero que entendam as entrelinhas dessa frase.

A vivência da morte de um ente querido gente, mais do que um amado bichinho de estimação, nos dá acesso primordial à lucidez de pensar o que você fez da vida até aqui e, embora com saldo positivo, se dispor a mudar a ideia de adiamentos para buscar viver com mais plenitude. Isso pode significar se reaproximar de pessoas e se afastar de outras que não te fazem bem. Te dá mais tolerância a quem pensa e é diferente de você e intolerância total ao que nada te acrescenta, seja em discussões ou em experiências amorosas ou de amizade.

Como diz o físico Marcelo Gleiser, o foco na vida não deve ser o envelhecer, mas o como envelhecer (e morrer realizado). Viver bem é estar atento à perda e não estar escravizado por ela, tentar desapegar do consumismo, ao excesso de coisas que acumulamos durante a vida. E também, friso, de não acumular ao redor pessoas que nada te acrescentam, ou que te fazem nascer sentimentos de posse ou inveja. Evita-se assim o arrependimento, que nos faz sofrer e ter culpa.

Luto é um processo. De achar que você fez o que podia por àquela pessoa, ou não, de achar que você deu todo o carinho que tinha de dar àquela pessoa, ou não. Ninguém vai entender teu luto, por vezes nem você mesmo. Mas a forma que você está vivendo o seu luto, só interessa a você mesmo. Por isso, nada mais positivo do que transformar seu luto em um momento de transformação de sua vida, que pode incluir algumas pessoas novas nessa caminhada e a retirada de outras de sua trajetória.

Fecho com o norteamento resumido de minha vida em diante traduzido por gente que admiro, da escritora Maria Valéria Rezende: “Sempre me senti atraída pelas histórias que me tiram do já sabido. É claro que cada um tem o direito de ler e escrever o que quiser, mas, para mim, o que interessa é aquele livro que me tira do meu cotidiano, da minha identidade e me faz experimentar, de alguma forma, o que eu não sou”. Leia-se livros e novos caminhos.

Também mais uma do profundo e simples Gleiser, quase repetindo o poeta, de que não há caminho, e o caminho se faz ao caminhar. “O sentido da vida é viver uma vida inspirada pela busca por sentido. Se expor à dúvida sem ter medo de errar. Errar é um passo essencial no caminho da procura. Só no fracasso nos deparamos com nossa essência, com nossos limites. E só arriscando, vivenciando o que nos é incômodo, é que damos sentido à vida.”

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