Tributo a Buñuel

Achamos que poderíamos vazar desta festa macabra, mas nos vimos de novo frente ao anjo exterminador...

Marcus Lacerda
21/02/2022 às 22:02.
Atualizado em 24/03/2022 às 21:44

O Anjo Exterminador foi o melhor filme que assisti do diretor de cinema surrealista, o espanhol Luis Buñuel. Trata-se de um clássico, em que uma festa aristocrática se passa em uma mansão. À medida em que avança a noite, algumas pessoas pensam em sair da festa, mas não conseguem. Em seguida, fica evidente que existe uma energia incômoda que não deixa nenhum convidado ir embora, apesar da ausência de qualquer bloqueio físico ou humano. 

O filme é uma bem elaborada crítica aos instintos humanos mais selvagens, e revela como as pessoas podem passar, subitamente, de uma posição glamorosa para uma condição instintiva de sobrevivência, sem qualquer cuidado com as aparências ou com a estética. Quando as máscaras caem, numa festa que aprisiona todos os convidados juntos, é o momento de conhecermos os verdadeiros personagens.

Estamos há cerca de dois anos aprisionados no maior tormento de nossas vidas: uma terrível pandemia, narrada e noticiada em tempo real por todos os meios de comunicação do planeta, e da qual ninguém mais conseguiu sair, a não ser morto. Políticos, médicos, cientistas, ativistas sociais, empresários, líderes religiosos, pais de família, youtubers, jornalistas, todos viraram comentadores e especialistas em doenças infecciosas.

Os telejornais já comentaram sobre a forma correta de usar a máscara, de tirar a máscara, de lavar as mãos, de sujar as mãos, de entrar em casa, de sair de casa. Eu já dei entrevista até de como lavar roupa suja. É talvez a doença para a qual mais se procurou uma cura, em toda a história da civilização. Já tentaram cloroquina, colchicina, ivermectina, melatonina, antidepressivos, ozônio retal e nada.

Depois de mais de meia dúzia de vacinas aprovadas, em tempo recorde, começou o inferno de convencer todos a se vacinarem, e desmentir os supostos eventos adversos. Tudo agora é culpa da vacina. Todos ficaram impedidos de morrer; quando morrem com um osso de galinha entalado na garganta, a vacina passou a ser a culpada. E a gente que achou que ia poder vazar desta festa macabra, se viu de novo frente ao anjo exterminador, discutindo a primeira, a segunda, a terceira e a quarta onda, além da primeira, da segunda, da terceira e da quarta dose da vacina contra a Covid-19.

Quando tudo parecia mais calmo, e o fim deste longa-metragem estava próximo, apareceu uma nova variante, fechando de novo todas as fronteiras, e reacendendo novos debates sobre o futuro da pandemia maldita. Ninguém sabe se tudo vai voltar ao normal, se existirá um novo normal, se a vida será anormal ou surreal. Ninguém se atreve a prever mais nada.

A gente não aguenta mais os especialistas dizendo que é preciso cautela. A gente não aguenta mais especialista em volta às aulas, especialista em Carnaval, especialista nisso ou naquilo. Se alguém manda tirar máscara, é investigado pelo ministério público; se manda colocar máscara, é comunista. Uma hora falta vacina e quem fura a fila vai em cana, outra hora as prefeituras mandam buscar as pessoas em casa para se vacinar. Primeiro faltam testes, depois os testes vencem. Uma hora testa todo mundo, depois só testa quem está grave. Viaja, não viaja, compra passagem, cancela passagem.

Ninguém aguenta mais tanta novidade, que se mescla aos temas já resolvidos, que são requentados. Enquanto a gente discute fazer uma quarta dose nos imunossuprimidos, tem caboclo no interior do Amazonas que ainda não tomou a primeira dose da vacina.

Já teve de tudo: gente que achava que não ia pegar a doença, e já morreu; gente que achava que ia morrer e continua viva e, cada um com sua experiência, já deu seu testemunho, já questionou seu governante, postou frases no Instagram. Tem gente que acha que a solução para isso tudo é a monarquia, outros acham que é o nazismo, enfim, todas as máscaras que podiam cair já caíram. No Brasil já teve CPI, denúncia ao Tribunal de Haia, protesto, ameaça de golpe, passeata, carreata, motociata, jeguiata.

O mundo nunca foi tão surreal desde Buñuel. A gente precisa criar coragem para sair deste filme de terror em que nos meteram, mas está difícil. Basta cochilar, e um novo tema volta a dominar o debate. Eu juro que preciso voltar a cuidar das outras doenças infecciosas dos meus pacientes. Eu não sei quem vai encerrar esta pandemia, mas de uma coisa estou certo: corrupção, pobreza, desemprego, violência urbana, tudo isto deixou de ser prioridade para qualquer político. Quem conseguir encerrar esta pandemia, eu garanto que tem meu voto e o de todos os que já não suportam mais a doença que nos extermina a cada dia.

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